ARTIGO: Triste País das narrativas

Democracia é formada por dupla faceta

A recente afirmação do presidente Lula da Silva durante a cúpula dos presidentes da América do Sul de que houve a criação de uma narrativa sobre autoritarismo e ausência de democracia na Venezuela, demonstra algo que merece especial atenção da sociedade brasileira. Em um lugar em que as versões sobre a realidade (as chamadas narrativas) são sobrevalorizadas, qual o peso atribuído aos fatos, tais como se apresentam de modo cristalino à comunidade? Se, em detrimento da concretude dos eventos cotidianos, valoriza-se sobremaneira o exercício retórico sobre os fatos, quais os efeitos práticos sobre a democracia e o futuro da sociedade? É sobre tais questões que se deve refletir um pouco mais detidamente.

Inicialmente, note-se que a afirmação feita pelo máximo mandatário brasileiro, ao encontrar Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, foi criticada pelos chefes de estado do Uruguai, Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, representantes de campos diferentes do espectro político. A ausência de vigor das instituições democráticas em terras venezuelanas, portanto, parece ser tão flagrante a ponto de unir pessoas com visão de mundo bastante diversa. O que os vincula, aparentemente, é a opinião de que, independentemente da ideologia, existem alguns valores inegociáveis, como o respeito aos direitos humanos, à democracia e às instituições. Tais parâmetros, aliás, são juridicamente protegidos em qualquer Constituição ou documento que estruture blocos regionais e organizações internacionais.

Diante disso, são preocupantes as manifestações que Lula adota em referência ao regime político da Venezuela (assim como já adotara, em algum momento, com relação a países como Cuba e Nicarágua, igualmente problemáticos em termos de respeito aos direitos ligados à dignidade humana). A sociedade espera que seja, no máximo, somente a demonstração de um afeto pessoal do presidente brasileiro pelo mandatário venezuelano, mas o histórico de declarações afáveis feitas por ele em relação a pessoas poderosas que tomaram atitudes discutíveis sob o prisma dos direitos humanos depõe contra o atual chefe do Poder Executivo do Brasil. De qualquer modo, mesmo que seja parte da política internacional manter contato com regimes não democráticos (inclusive com objetivos econômicos), nada autoriza fazer a defesa de configurações de poder desse tipo.

Como é sabido, a democracia é formada por dupla faceta: instrumental (aferição da vontade da maioria) e material (respeito aos direitos fundamentais). Ainda que eleições sejam formalmente realizadas, o descumprimento de normas que protegem a dignidade humana vulnera qualquer concepção democrática. Portanto, o desprezo à realidade por meio de malabarismos retóricos, criando as chamadas narrativas, consiste em atitude bastante nociva à construção de ambiente saudável para a vivência cotidiana do povo, passível de ser manipulado em tais situações, com base na desinformação, especialmente em época de redes sociais, algoritmos e grande rapidez de disseminação de notícias (sejam verdadeiras ou falsas). Existem fatos e submetê-los pura e simplesmente ao império de eventuais versões distorcidas pode criar um panorama de elevado relativismo moral, no qual é impossível vicejar qualquer tentativa de construção social minimamente decente. Como moldar uma sociedade baseada em valores que tenham como fulcro a dignidade humana se a realidade pode ser manipulável, ao sabor dos ventos ideológicos, com influência deletéria sobre as principais instituições nacionais? Deste modo, a honestidade de hoje poderá ser conspurcada por uma mera narrativa amanhã e a corrupção de ontem será laureada no futuro, bastando, para isso, que a versão majoritária (ou artificialmente criada) mude.

Em um território marcado pela prevalência de narrativas, portanto, não há como edificar um país conforme a determinação constitucional relativa aos fundamentos da cidadania e dignidade humana (incisos II e III do artigo 1º do Texto Maior) ou de acordo com o objetivo de que seja uma “sociedade livre, justa e solidária” (artigo 3º, inciso I), pois a comunidade pode ser facilmente manipulada por visões sectárias que distorcem os fatos de modo a servir aos respectivos anseios. A prevalência dos direitos humanos é princípio que rege o Brasil no campo das relações internacionais (artigo 4º, II) e prestigiá-lo em encontros de chefes de estado, acautelando-se em relação à sinalização que determinadas falas podem produzir sobre parceiros estrangeiros é importante passo na reconstrução da imagem nacional como ator internacional que tenha alguma respeitabilidade. As narrativas existem, mas os fatos são teimosos e insistem em contradizê-las (ao menos, na democracia).

*Elton Duarte Batalha é professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

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